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O jogo do visível e invisível

terça-feira 16 de junho de 2020, por Antonio Herci,

Um olhar diferente revela novas presenças na obra e antigas ausências no museu

Foto: Objeto Ativo de Willys de Castro sob ângulos de visão diferentes, Exposição Nemirovsky, Pinacoteca de São Paulo, visitada antes da pandemia.

Ao observamos partes visíveis das coisas, nossa imaginação e memória nos induzem a completar as partes que não estão à vista, buscando uma completude do objeto. Quando olhamos um carro vindo em nossa direção apenas de frente, sem nunca o ter visto antes, sabemos que é um carro inteiro, supondo sua cor uniforme, formas recorrentes das marcas e complementamos esse carro com aqueles outros carros que guardamos em nossa memória perceptiva. Segundo o filósofo Merleau-Ponty, o jogo entre o visível e o invisível pode ser notado na observação do próprio corpo: “o enigma consiste em meu corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível”. A natureza nos deu olhos nas faces, e não podemos observar a não ser as partes que nossa visão alcança, mas temos a certeza vital de que somos um corpo inteiro: ao olhar nossa mão, visível, recompomos, por meio das sensações, o restante do eu invisível.

O Objeto Ativo, do pintor brasileiro Willys de Castro (1926-1988), exposto na Pinacoteca de São Paulo antes da pandemia, é uma expressão disso. O desenho de quadrados é primeiramente pintado sobre uma tela plana que é usada, depois, para revestir um cubo de madeira, onde se encaixa perfeitamente fazendo com que os desenhos dos quadrados se encontrem nos vértices do cubo e criando um efeito que pode ser comparado ao jogo entre o visível e o invisível: olhada de frente (Figura 1) dá a impressão de dois quadrados, maior e menor, pintados em uma superfície plana.

Mas basta uma pequena movimentação do olhar para observarmos sua forma sólida: um cubo (Figura 2). Ao nos movermos mais um pouco, podemos notar ainda, dentro desse cubo, um outro que se materializa no encontro dos vértices, dando a sensação de estarmos diante de um novo cubo sólido. Segundo seu autor, a matéria do cubo — a madeira — se desmaterializa, enquanto o virtual — as imagens planas que sugerem um sólido — se torna material. Foi uma das primeiras vozes a refletir sobre o que hoje é uma trivialidade: a virtualidade como composição ativa da percepção do real.

Esse jogo se dá com toda obra de arte que, observada em momentos e olhares diferentes, nos revela aspectos impensados ou ofuscados, excluídos do cotidiano da razão, esquecidos em um canto da política ou da cidadania ou invisíveis nos museus.

O autor nos propunha circularmos a obra e, pela mudança na perspectiva do olhar, recompor o objeto em suas camadas de visíveis e invisíveis. Mas esse giro acabou extrapolando e desprendeu-se em rodopio por toda aquela bela sala de exposições, provocando uma espécie de vertigem ou mal estar que alguma entranha teimava em revelar, não pela profusão de imagens que os olhos viam, mas através de uma ausência ancestral que revelava ao espírito que faltava algo: ao percorrer o corpo do museu, imerso naquelas lindas e maravilhosas obras, quase só haviam autores homens. As mulheres, ali retratadas e visíveis como objetos nas pinturas, eram ofuscadas em sua autoria, criatividade e presença artística... A quase totalidade ali exposta, pela ausência, revelava a totalidade da ideologia por detrás de qualquer museu do mundo: a tentativa de apagamento da autoria feminina que percorre, direta ou indiretamente toda a história das artes.

Se a ideologia tem como característica mais marcante sua auto ocultação — ao travestir-se de certeza, verdade ou totalidade —, não resiste ao espanto: não sei se provocado pelo Objeto Ativo, pelos belos quadros ou pela ausência da autoria da mulher no acervo, a pergunta que me intrigou foi: que completude ou beleza pode haver no mundo que possam ser observadas para além dessa inevitável imersão em nossa própria ideologia?

Não era fácil ou trivial observar essa ausência, mas, uma vez revelada, não havia como apagar do espírito essa imagem devastadora da tentativa de apagamento.

Serviço:
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2013.
Visite a PINACOTECA DE SÃO PAULO em um tour virtual, durante a pandemia.
Site: https://pinacoteca.org.br/
#PINADECASA: https://pinacoteca.org.br/pinadecasa/
Exposição Nemirovsky: https://pinacoteca.org.br/programacao/galeria-jose-e-paulina-nemirovsky-destaques-do-acervo/

Figuras 1 e 2 - Objeto Ativo de Willys de Castro sob ângulos de visão diferentes, Exposição Nemirovsky, Pinacoteca de São Paulo, visitada antes da pandemia.