Página inicial > Ciranda Mundi > A arte e o sofrimento
A arte e o sofrimento

terça-feira 4 de agosto de 2020, por ,
A arte sempre conviveu muito de perto com o sofrimento.
Muitas vezes com um sofrimento surdo e não aparente: o sofrimento do artista, deslocado socialmente, internado, torturado ou preso por expor o que não deveria ser exposto; o sofrimento de modelos, atores ou intérpretes em suas longas horas distante da vida para que possam dar vida à obra; o sofrimento geral de viver da arte em um modo de vida, sendo sistematicamente colocado à margem dele, pela inutilidade e quase nenhuma aderência em seus processos produtivos.
Outras vezes é exposto publicamente e sem pudor como chaga aberta: desde a antiguidade as tragédias tornavam públicas as entranhas do sofrimento e, diante do terror e do medo que causavam, podiam dar margem ao enfrentamento do sofrimento de si, um fenômeno que se chamou de catarse.
A arte, nesse convívio com o sofrimento, revela aspectos das sociedades e modos de vida que são ofuscados ou afastados de nossas vistas, que sofrem diversos tipos de abafamento ou apagamento histórico e sobre os quais se faz um pacto de silêncio. Coisas com as quais convivemos, mas que tentamos com todas as forças ignorar, olhando para o outro lado e nos distraindo: como a miséria, a fome e a desolação que ameaça a vida da maior parte dos humanos do planeta. Ou um passado de escravidão que nos acompanha e se introjeta em nossa vida com o fantasma do racismo, discriminação, da eugenia e do genocídio.
Diante de todas aquelas coisas sobre as quais se cala, a arte mostra.
Mostrando, denuncia. Denunciando, choca.
As imagens costuradas de Rosana Paulino (1967), figuras de 1 a 4, reconstituem e dão voz à história que se tenta apagar da perversão e violência da escravidão, e chocam. A artista intervém com tintas, colagens e com formas de bordado e costura quase ancestrais, em imagens que estariam perdidas, mas reencontram seu tempo e lugar. Imagens que já foram consideradas científicas, pelos eugenistas do século XVIII e XIX que estudavam os negros como animais (figuras 1 e 3) em sua “ciência”. Imagens reencontradas da ascendência e história familiar de pessoas (figura 4). Realiza gravuras com planos de intervenções quase performáticas que mostram fios desenhados como analogias das rotas vitais dos líquidos humanos de vitalidade — seu leite, seu sangue e suas lágrimas (figura 2) — estampando a resiliência da vida como concepção, alimento e resistência como fluxo que brota do humano e nele se conserva como eternidade.
As fotografias de Sebastião Salgado (1944), figuras de 5 a 8, também são imagens chocantes que resistem a um apagamento histórico, mas do tempo presente. Se as linhas de Rosana teciam sua história, as luzes captadas pela lente do fotógrafo revelam o presente ocultado.
Revelam uma dignidade que muitas vezes tenta-se expropriar, mas que em nada perde ao se apoiar em uma bengala e, malgrado a desnutrição e a exposição nua e crua do corpo resultante da fome, atira como seta a resiliência de um olhar que procura respostas (figura 5). As imagens insistem, ainda, na mesma resistência da concepção e continuidade da vida, brotando pelos seios e registrando a teimosia do fluxo do líquido que procura alimentar a vida, ininterruptamente, e continuar sua missão em um mundo árido e onde falta líquido potável (figura 6). Uma fina e impertinente ironia parece ainda revelar uma “igualdade” cínica: as famosas sandálias brasileiras calçam quem pisa e esfola os pés (figura 7) para abastecer de riquezas e de hábitos quem, com as mesmas sandálias, toma sol em Copacabana com os pés devidamente protegidos por cremes e com estômagos já saciados por alguma iguaria.
Alguns poderiam dizer que Rosana Paulino expõe imagens chocantes não como denúncia, mas como fetiche do sofrimento étnico: imagens que, indistintamente servem como denúncia, mas também como deleite para os próprios perversos.
Susan Sontag (1933-2004) acusou Sebastião Salgado de fazer “estética da miséria”.
Aos primeiros, podemos apenas afirmar que, para o perverso, tudo é perversidade. Mas, para nós, trata-se de um enfrentamento bruto e certeiro.
Quanto à observação da crítica e ativista, o fotógrafo respondeu abreviadamente: “meu cu! Eu fotografo meu mundo!”
Podemos de forma mais cortês, entretanto, responder à pensadora que é verdade que ambos expressam uma estética... Mas não é a da perversão ou da miséria.
Assim como o teatro grego que, através do medo e do terror causavam uma catarse final, suas imagens chocantes causam um compartilhamento de sentidos e paixões, que podemos chamar de compaixão: nos transporta para uma espécie de carne do mundo, onde sentimos em nós e na alteridade a face ou história que se tenta ocultar... E não se pode ocultar tão facilmente algo que se sente na própria carne. Mostram um momento tal que todo esse sofrimento se torna ação de resistência, ocupando um latifúndio, rompendo suas porteiras, mas tendo presente a música, magistralmente representada em primeiro plano pela flauta captada pelo olhar atendo de quem registra a história (figura 8).
Onde muitos esperariam um retrato da perversão ou da miséria os artistas constroem um quadro de compaixão e nos ligam por fios a uma sensação compartilhada de peso e lastro de humanidade.
As obras
ROSANA PAULINO
Figura 1 - Permanência das Estruturas, 2017. Técnica mista sobre tecido e costura. Coleção da Artista. Disponível em AmLatina.
Figura 2 - Desenho da Série Ama de Leite, 2005, acrílica e grafite sobre papel, 32,5×25 cm. Disponível em Afreaka.
Figura 3 – Atlântico Vermelho. Impressão sobre tecido, ponta seca e costura. 58 x 89,5 cm. Disponível em Galerias Superfície.
Figura 4. Parede da Memória, 1994-2015. Aquarela, Manta acrílica e fotocópia sobre papel colado em tecido e papel costurados. Acervo da Pinatoteca do Estado de São Paulo. Disponível emEl País.
SEBASTIÃO SALGADO
Figuras 5, 6. África. Taschen. Livros de Fotografias com textos em Português, Italiano e Espanhol. 2015. Disponível em Cultura Estadão
Figuras 7, 8. Terra. Com SARAMAGO, José; BUARQUE, Chico. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Disponível em google
ENTREVISTA COM SEBASTIÃO SALGADO:
“Foi dito que eu fazia estética da miséria”. El País Semanal, 2019. Disponível em El País.
Artigos assinados não expressam necessariamente a opinião da Ciranda e são da responsabilidade de seus autores(as).