Página inicial > Ciranda Mundi > Nova-mente: autoria compartilhada

Nova-mente: autoria compartilhada

terça-feira 20 de outubro de 2020, por Antonio Herci,

NOVA-MENTE (Figuras 1 a 4) foi realizada e apresentada em 1981 durante o XII Festival de Inverno de Campos de Jordão, um dos mais importantes e tradicionais festivais de música do Brasil, que reúne anualmente professores, alunos, artistas e realiza uma significativa programação de cursos e apresentações [link no pé da matéria].

A obra musical e performática foi resultado de um trabalho de pesquisa e produção coletivas durante o curso de Composição Musical, oferecido por H. J. Koellreutter (1915-2005, figura 1), que também regeu a apresentação final.

O professor havia convidado Otávio Donasci (1952, figuras 4 e 5) para esse seu concorrido curso, para que participasse como aluno e o ajudasse a organizar o concerto final de algo que pretendia ainda construir.

Donasci, em entrevista para o Canal Contemporâneo (2011), contou que, diante do fato de ser um festival de música voltado para músicos, embora tenha aceitado imediatamente, retrucou ao mestre: “mas eu não sei tocar nada”.

Koellreutter respondeu prontamente: “VOCÊ VAI TOCAR VÍDEO!”

A PERFORMANCE E A VIDEOCRIATURA

Os músicos dispunham-se em um círculo, tendo ao centro uma partitura PLANIMÉTRICA (figura 2), o método gráfico de composição e escrita que o professor utilizava, utilizando pontos, linhas, planos e ícones ao invés de pentagramas e notas.
No primeiro plano do palco, diversos televisores voltados para o público projetavam cenas planejadas e sincronizadas com o som, soltadas manualmente (por videocassetes), já que não existia ainda tecnologia on-line (figura 3). Um a um os televisores eram disparados de forma manual e mecânica pelo idealizador da performance visual, Donasci.

Em um dado momento, apagavam-se as luzes e entrava, pela primeira vez na história, a VIDEOCRIATURA (figuras 4 e 5): um ser humano com cabeça de televisão (ainda de tubo na época).

Em uma aparição estranha e bizarra, Donasci surge em um corpo com uma cabeça-televisão, que projetava um vídeo, a partir de um videocassete escondido no figurino. As imagens eram gravações dele mesmo, em closes de seu rosto, parodiando o governador da época, Paulo Maluf, com frases típicas de sua política populista, principalmente promessas feitas em voz embaralhada: “eu prometo isso... eu prometo aquilo...”.

O detalhe é que o governador em pessoa fazia parte da plateia, já que era um dos eventos importantes no encerramento do Festival.

Em dado momento entravam diversos performers, homens e mulheres, semiobscurecidos pelo ambiente e iam dizendo, no ouvido das pessoas em sussurros e cochichos: “é mentira, é mentira, é tudo mentira...”, referindo-se às promessas que a vídeocriatura ia fazendo, como bom político.

A orquestra em círculo, em volta da partitura também circular composta de desenhos, gráficos e diagramas, executava a obra sob a regência de Koellreutter, explorando, além dos sons tradicionais dos instrumentos, formas inusitadas de tocar.

Em dado momento, depois da saída da VIDEOCRIATURA, quando a peça já discorria há um tempo, o professor fixou, com fita adesiva, a nota de um sintetizador, equipamento também estreante em palcos de música para orquestra naquela época, que começou a emitir uma nota média prolongada.

Uma das grandes diferenças das notas de um sintetizador e de um instrumento ou canto, é que as notas produzidas por humanos e objetos tem duração limitada e terminam em um fôlego, batida, arcada ou tempo de vibração. A nota do sintetizador, entretanto, pode potencialmente durar para sempre.

Todos pararam sob o comando de Koellreutter. Ficou a soar apenas a solitária nota fixada com fita.

Por muitos e muitos minutos... causando aplausos, vaias, aplausos de novo, assovios, mais vaias... parte do público chegou a abandonar o auditório, mas a parte que ficou acabou atraindo de volta novo público... novos aplausos e vaias...

Diante do compositor parado de braços cruzados junto com a orquestra, a grande questão era: “essa apresentação não acaba nunca?... ou já acabou?”

O plano de Koellreutter era deixar a nota soando até que a última pessoa deixasse o ambiente. O público, entretanto, não se retirou e passou a protestar, ou aplaudir...

De forma inesperada um saxofonista — Hector Costita (1934) — ocupou o palco e a cena e iniciou um improviso a partir da nota que estava soando, desenvolvendo algumas frases e variações... Obtém a aprovação de Koellreutter e, seguindo o novo movimento, o regente conduz e a orquestra ressurge em diálogo que caminha para o encerramento da peça.

CRIAÇÃO COMPARTILHADA

O fato de o governador estar presente, da impostação e empolamento da VIDEOCRIATURA ser típica do político, de fazer promessas parecidas com as que eram feitas e a entrada dos atores cochichando ao pé do ouvido dizendo que era mentira, acabaram por expandir o campo expressivo que extrapolou a estética e ocupou um lugar próprio nas discussões da sociedade: uma dimensão política.

Além disso, Koellreutter também propunha coisas muito novas e que tomariam centralidade na contemporaneidade: primeiramente apresentando a obra como um PROCESSO de criação, produção e performance e não como um objeto estático.
Mas principalmente por propor uma forma de autoria que remete a um SUJEITO COMPARTILHADO.

Desde o início, o processo de Nova-mente trazia consigo a importante ideia de uma autoria coletiva, compartilhada não apenas entre os músicos e performers, mas com o próprio público, com sua imprevisibilidade e suas reações espontâneas e aleatórias recriando a peça.

O trabalho final mantinha as marcas de uma personalidade múltipla, coletiva e dinâmica. O sujeito criador que Koellreutter propõe não é uma pessoa isolada e sim um coletivo humano, formas separadas numa forma só: uma rede de trabalhos e de gestos que permite conceber a criação como uma humanidade em processo.
Esse ser compartilhado, de caráter político, que assume uma autoria em rede, possibilita que se realize um tipo de arte voltada para o fortalecimento de expressões locais ou identitárias de sujeitos coletivos que sofrem constantemente processos de apagamento, pelo racismo, misoginia, preconceitos ou discriminações.
Uma arte fundamental para nossa contemporaneidade!

IMAGENS

Figuras 1 a 4 – NOVA-MENTE. Todas as imagens foram retiradas do filme da apresentação em Campos de Jordão durante o Festival de Inverno de 1981, realizado e conservado por Otávio Donasci. Foi apresentado por ele durante ocolóquio “IMPRECISO E PARADOXAL, 100 anos COM Koellreutter”, no Museu de Arte Contemporânea (MAC), PGEHA/MAC/USP, 30 de setembro de 2015.

Figura 5 - PERFORMANCE DASHNYA! Otavio Donasci na Galeria Jaqueline Martins. 2013 @Paula Dalberto (flickr).

FESTIVAL DE INVERNO DE CAMPOS DE JORDÃO acontece anualmente em Campos de Jordão, cidade do Estado de São Paulo.

Confira todas as colunas: